Ataques químicos: os agrotóxicos que caem do céu no Maranhão

Em abril, a Amazônia Real já havia denunciado a pulverização de agrotóxicos, prática que deixa rastros de destruição por onde passa. A reportagem ouviu uma série de relatos de trabalhadores e trabalhadoras sobre a ação, que, além de matar a produção agrícola das famílias, causa problemas de saúde como feridas, queimaduras, coceiras, tontura, dor de cabeça, falta de ar, lesões nos olhos, vômito e fadiga.

De acordo com um novo levantamento elaborado pela Rede de Agroecologia do Maranhão (Rama) e pela Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema), mais de 80 comunidades sofreram com os impactos socioambientais causados pelo lançamento de veneno entre janeiro e maio deste ano.

O Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Timbiras (STTR) reforça que o agronegócio continua “colocando veneno” nas comunidades.

Em vídeos enviados à reportagem, os moradores mostram que flagraram, no dia 17 de maio, a pulverização aérea sobre a comunidade Manoel dos Santos, no município de Timbiras, leste do Maranhão. Todo o roçado de arroz e milho foi destruído. No início de maio os ataques químicos ocorreram na comunidade tradicional Canafístula, também em Timbiras.

Luis Antonio Pedrosa, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Maranhão (CEDDHMA), afirma que a ação de despejo de veneno fica pior a cada dia que passa, porque reconfigura o conflito fundiário para além das cercas das fazendas.

“Não é mais apenas uma estratégia de expulsão de moradores antigos, atinge também muitas comunidades vizinhas”, diz. Ele lembra que o Maranhão tem grande incidência de posseiros, o que só intensifica a tragédia.

A Fetaema e a Rama formalizaram denúncias junto ao Ministério Público do Maranhão, Defensoria Pública do Estado, Ministério Público Federal e Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade.

Com orientações da Rama, os próprios moradores dos territórios campestres Lagoa, Canafístula, Serafim e Parazinho, de Timbiras, elaboraram e encaminharam uma denúncia no dia 17 de maio ao Ministério Público do Maranhão. O documento expõe um suposto crime ambiental e sanitário cometido por um fazendeiro no povoado Conceição, nas proximidades das comunidades.

Os trabalhadores rurais afirmaram que o fazendeiro estava jogando veneno com um avião pulverizador e prejudicando a saúde dos moradores, principalmente das crianças, ao envenenar a água e matar as plantações das comunidades.

Em entrevista à Amazônia Real, Maria das Dores Botelho, moradora da comunidade Canafístula, conta que os canteiros de horta estão morrendo e a roça de arroz pode estar contaminada. “Eu acredito que o veneno contamina o cacho [do arroz]. Ele já está todo maduro, mas o nosso medo é estar contaminado e a gente ser obrigado a comer porque não tem outro”, lamenta.

Maria diz que até agora nenhum órgão da Justiça entrou nas comunidades, “para fazer com que eles [fazendeiros] arquem com os danos que foram causados”.

A Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Participação Popular, por meio da Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade, respondeu à reportagem que articulou com órgãos da gestão estadual a garantia de que os moradores recebam atendimento médico para tratar os problemas decorrentes do contato com as substâncias químicas. A secretaria também afirmou que encaminha alimentos, água tratada e água potável aos moradores.

A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e a Secretaria de Estado da Segurança Pública disseram que verificam os casos denunciados.  A Secretaria do Meio Ambiente, em parceria com a Agência Estadual de Defesa Agropecuária, informou que realiza ações fiscalizatórias e, em caso de detecção de irregularidades, o infrator é autuado e responde pelo dano ambiental causado.

A secretaria garantiu estar mobilizando uma equipe para fiscalizar os casos denunciados e realizar a coleta de amostras de água em pontos estratégicos, para identificar a contaminação e seus possíveis poluidores.

Crianças e plantações são os mais atingidos

De acordo com o relatório técnico do CEDDHMA, a pulverização aérea de agrotóxicos é responsável pela ampliação dos conflitos no campo maranhense. Os efeitos são violentos e materializados em forma de exposição permanente aos venenos, lançados livremente por aviões e drones sobre residências, escolas e áreas de plantios.

Os depoimentos apresentados no relatório apontam a gravidade do cenário. Os trabalhadores rurais são intoxicados por agrotóxico de forma direta, sem que haja qualquer controle e fiscalização por parte das autoridades públicas.

A Fetaema, que acompanha as comunidades tradicionais do Maranhão, explica que essa forma de pulverizar dificulta a vida dos pequenos agricultores, porque o veneno cai nas roças e mata toda a plantação.

“As águas também estão dando muita coceira no corpo das pessoas, roupas estendidas nas proximidades dos campos dão coceira. As galinhas que ficam perto dos campos têm vários problemas, os porcos e os patos também. Isso quando não morrem”, relata Francisca das Chagas Santos, coordenadora regional da Fetaema na região do Baixo Parnaíba.

Os danos no Baixo Parnaíba se estendem ainda a mortes de peixes, animais domésticos e abelhas. Há ainda a questão do adoecimento psicológico de trabalhadores dessa e de outras comunidades. O despejo de veneno nas comunidades gera medo. “Tem gente com depressão e ansiedade”, revela Cleane de Oliveira, presidente do STTR Timbiras.

Na comunidade Roça do Meio, no município de Duque Bacelar, o lançamento de agrotóxicos aconteceu sobre as escolas, afetando as crianças. Há casos de doenças de pele que parecem nunca passar, por exemplo. Segundo os moradores, ainda não houve qualquer intervenção por parte das autoridades.

As famílias de assentados e agricultores não contam com água potável para consumo e, segundo relatos, estão consumindo água das chuvas. Os atingidos por agrotóxicos tampouco foram atendidos pela rede pública de saúde. Eles pediram at doação de cestas básicas, de água potável e de atendimento de saúde. Também pedem que pare a atividade de pulverização aérea de agrotóxico.

Na última semana, o STTR de Timbiras, a Fetaema e a Rama realizaram doação de cestas básicas aos moradores de oito comunidades tradicionais que perderam toda a produção agrícola de 2024.

Diante da situação de calamidade, as lideranças rurais pedem intervenção urgente da Justiça.“Que esse problema seja resolvido para não colocar mais [veneno], porque as autoridades ainda não fizeram nada para ajudar”, manifesta a ativista Cleane de Oliveira.

Em e-mail enviado à Amazônia Real, o Governo do Maranhão afirmou que uma equipe da Força Estadual de Saúde, designada pela Secretaria de Estado da Saúde, está disponível para prestar atendimento às comunidades. No entanto, salienta que “aguarda a solicitação com as demandas dos municípios, considerando que o trabalho da mesma só pode ser executado quando há pactuação direta entre as partes”.

A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social, apesar de não ter recebido pedido de auxílio dos municípios afetados, informa que fez um encaminhamento interno para tomar providências, com o objetivo de atender as comunidades.

Em resposta aos questionamentos da reportagem, o Ministério Público Federal no Maranhão informou que foi realizada uma Notícia de Fato na Procuradoria Municipal em Caxias (PRM/Caxias), encaminhada a partir de representação da Fetaema. O caso é apurado.

O órgão ressaltou ainda que há cerca de dois meses participou junto com a Comissão Nacional de Violência no Campo de uma reunião com a presidente da Assembleia Legislativa do Maranhão, deputada estadual Iracema Vale (PSB).  Na ocasião, foi proposta uma discussão sobre o uso de pulverização de agrotóxicos como arma química contra comunidades tradicionais.

A Defensoria Pública e o Ministério Público do Estado do Maranhão não retornaram os questionamentos da reportagem sobre as denúncias das comunidades.

Agrotóxico como arma química

Em abril, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou a 38a edição da publicação “Conflitos no Campo Brasil”, com os dados atualizados sobre violência ligada a questões agrárias no país ao longo de 2023.

No primeiro ano de governo do terceiro mandato do presidente Lula (PT), foram registrados os maiores números de casos de violência no campo desde o início dos levantamentos, em 1985. No total, foram 2.203 conflitos, contra 2.050 em 2022 e 2.130 em 2020, até então o primeiro lugar em números de casos.

O Maranhão ocupa o terceiro lugar em número de conflitos por estado. Foram 206 casos registrados. Os dados da CPT mostram como os conflitos no campo deixam um rastro de sangue, morte e destruição nas vidas de pessoas que lutam por seus territórios, direitos humanos e modos de vida e da natureza.

Em 2023, foram registradas 554 ocorrências de violência contra a pessoa, que é direcionada diretamente aos indivíduos, e não à coletividade das famílias nos territórios. As violências afetaram cerca de 1.467 pessoas. Neste recorte, o tipo de violência com mais vítimas foi a contaminação por agrotóxicos, com 21 ocorrências.

A contaminação por agrotóxicos afetou 336 pessoas e a CPT observou um aumento de 74% em relação aos casos de 2022. O principal causador das violências no campo é o fazendeiro, com 51,2% dos registros de ocorrência. O empresário vem em seguida, com 13% das vítimas de violência sob sua responsabilidade. Em terceiro está o grileiro, com 9,3%, seguido do garimpeiro, com 7,3%, e do governo estadual, com 5,4%.

‘Pacote do Veneno’ avança

O Congresso Nacional derrubou, no dia 9 de maio, parte do veto do presidente Lula à Lei 14.785/2023, que flexibilizou o controle de agrotóxicos e ameaça a saúde e o meio ambiente. A lei é apelidada de “Pacote do Veneno” por organizações ambientais e foi aprovada no Senado em novembro do ano passado, impulsionada pela bancada ruralista.

Foram derrubados 8 dos 17 vetos que haviam sido feitos pelo Executivo e reconheciam as inconstitucionalidades apontadas por organizações científicas, como a Fiocruz e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), órgãos de fiscalização ambiental, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ainda por centenas de entidades da sociedade civil que demonstraram os riscos dos direitos à vida, à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Agora, o Ministério da Agricultura e Pecuária é o responsável exclusivo pelo registro e fiscalização dos agrotóxicos em casos de reanálises de produtos, excluindo dessa análise o Ibama e a Anvisa.

“Essa mudança é uma ameaça à saúde pública e ao meio ambiente, uma vez que retira o rigor técnico desses órgãos especializados na avaliação dos impactos ambientais e de saúde. O Brasil, já conhecido como o maior consumidor de agrotóxicos do mundo (cerca de 719 mil toneladas consumidas em 2021), pode potencializar esse ranking a partir das consequências dessa flexibilização”, disseram em nota as organizações que compõem a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.

Redução de impactos

Iniciativas populares, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, se mobilizam para tentar reduzir os impactos do veneno sobre as comunidades tradicionais. A rede de apoio aos atingidos foi fundamental para a aprovação da lei que proíbe a pulverização aérea no município de Caxias, localizado a 360 km de São Luís, no Maranhão, por exemplo.

A zona rural de Caxias é marcada por conflitos agrários e socioambientais como consequência do avanço intenso do agronegócio na região, especialmente da monocultura de soja.

A lei prevê multa de R$ 50 mil para quem desrespeitar a proibição, mas a mobilização popular pretende alcançar ainda o nível estadual, a exemplo do Ceará, que garantiu no Supremo Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade da lei que proíbe a pulverização em todo o território do estado.

“Queremos expandir a estratégia legislativa do Ceará e trazer para o Maranhão”, afirma Luis Antonio Pedrosa, presidente do CEDDHMA.

Como não há um marco legal definido para impedir a pulverização, Pedrosa argumenta que somente em alguns casos acontece a intervenção das autoridades, “mas até agora nenhuma responsabilização efetiva”.

NEXO JORNAL LTDA

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